quinta-feira, 24 de abril de 2008

25 de Abril! Apesar de tudo (1)*

Aquela velha e teimosa senhora chamada utopia

Ensinaram-me, ainda menino, nos bancos da escola, um certo sentido épico da História de Portugal. Daí, talvez, este meu arreigado apego à terra e ao povo a que pertenço. Para mal dos meus pecados, pertenço à raça daqueles que não concebem viver sem a sua terra e sem a sua gente. Trazem-nas no peito. E com elas a dor de quem muito exige, porque muito lhes quer - até aos limiares da injustiça, que é o exigir transfigurações a quem não sabe, não quer, ou não pode dar mais.
Esse sentido épico mantém-se e reforça-se criticamente com escritores que me fascinam e me apaixonam: Camões, Antero, Herculano, Aquilino, Jorge de Sena. Também Pessoa, na Mensagem. Em todos eles ressuma uma tensão épica, utópica e mítica que, a um tempo, me seduz e magoa. O mesmo direi daquele 25 de Abril, já quase só mito, onde pulsou o fogo da alma que alimenta a vida.
Foi a 25 de Abril. Poderia ter sido noutro dia qualquer. Mas foi a 25. A mudança era inevitável. O regime fascista era uma maçã bichosa. Podre. Incapaz de se suster. Qualquer aragem a faria cair. E fez. Estava tudo cansado e descrente. Mesmo os indiferentes. Mesmo os ignorantes. Mesmo os colaboracionistas e os "bufos". Todos sabiam que a queda do fascismo era iminente.
Caiu a 25 de Abril. Sonhos secretos explodiram, contagiando tudo e todos. Rebentou-se o calendário parado num tempo que nos abafava. Acabou o pesadelo castrante da ridícula ditadura que nos mantinha isolados e imóveis numa Idade Média fora do tempo. Reencontrámos o nosso tempo. Recuperámos o nosso orgulho de pátria. Reconciliámo-nos todos numa esperançosa bebedeira de vida. Fomos actores de primeira nos palcos da rua. E, numa alegria épica de povo, pintámos tudo de cores garridas, e inventámos um mito. Demos-lhe um nome - 25 de Abril.

A história não se faz num só dia. Mas há dias que fazem história por consubstanciarem ideais que longa e sofridamente esperaram para florir. Foi o que aconteceu a 25 de Abril de 1974, neste país isolado, ofendido e humilhado, onde as espingardas floriram em cravos. Mas esse dia, que hoje é mito, não se descomprimiu abruptamente do nada, por capricho dos deuses. Nasceu de gestos e de atitudes de homens e de mulheres que ousaram sonhar e que ousaram erguer a voz contra a ditadura, pela liberdade, numa resistência de muitos e longos anos. Foi o caso de Humberto Delgado, e de todos quantos o acompanharam no desafio à ditadura nas eleições presidenciais de 1958, cujo combate por um regime democrático abriu brechas na suposta solidez absoluta do Estado Novo, e mostrou que a conquista da liberdade exige coragem, determinação e ousadia. Foi também o caso de muitos outros, em associações clandestinas, em associações “toleradas”, em gestos de coragem individual. Todos eles deram passos decisivos para que se criasse aos poucos uma nova mentalidade e uma nova cultura política, ao recusaram ser escravos do medo, pagando, embora, um preço muito elevado – a discriminação, a perseguição, a prisão, e até a morte.
Associar, pois, todos esses homens e mulheres, e o eco positivo da sua luta pela liberdade, com o 25 de Abril de 1974, afigura-se-me não só lógico, como justo, dada a sua acção precursora pelo derrube da ditadura e pela instauração de um regime democrático.
Dizer isto não é apoucar os homens de Abril, mas sim mostrar a consequência histórica da razão do seu nobre gesto e, deste modo, dignificá-los mais, não deixando que o 25 de Abril se confunda com uma mera acção corporativista, militarista, desgarrada e voluntarista, sem ligações profundas com a história e com a alma de um povo. Na verdade, e sem deixar de reconhecer alguns dos chamados homens de Abril, e lhes prestar homenagem pela grande coragem que demonstraram, outros heróis há que os precederam: os que longamente resistiram, os que não desistiram, os que se sacrificaram, os que morreram.
No 25 de Abril, o verdadeiro herói foi colectivo. Como em Fernão Lopes. Para legitimarem o Mestre. Foi o povo que, com a sua acção transfiguradora, épica e utópica, legitimou o golpe militar de Abril. Cada vez se vai falando menos desse povo na rua, marginalizando a sua acção, e não lhe dando a relevância histórica que por direito tem.
Nas comemorações oficiais e nacionais do 25 de Abril vê-se bem essa marginalização. Elas, as comemorações oficiais, primam, regra geral, pela ostentação da pompa, da circunstância e do alarido, aliando a sua efemeridade a um sensacionalismo promotor dos celebrantes, à custa do apagamento da importância do acto celebrado, naquilo que ele tem de histórico, sociológico e politicamente sério.
Nelas promovem-se uns e esquecem-se outros, de acordo com as conveniências, as circunstâncias e as simpatias. Fazem-se listas de quem é e de quem não é de Abril; de quem é e de quem não é herói. Este jogo chega a atingir os limites do brincar com a memória crítica de quem viveu os acontecimentos, tentando reescrever a história, mutilando-a. E é por isso que os “oficialmente” identificados como heróis de Abril, vítimas muitas vezes de si próprios, e destas vicissitudes, vão aparecendo como heróis sem a consistência necessária para serem tais.
O povo, esse não cabe, nem poderia caber, nas listas. Deixou o palco da rua e os celebrantes subiram ao palanques das comemorações decorativas e do elogio fácil. Do elogio fútil. Do elogio mútuo, onde cabe tudo. Assim, as comemorações foram perdendo o espírito de Abril, restando-lhes quase só o simulacro.
Mas o que é que foi ou como é que foi verdadeiramente o 25 de Abril? Que resta dele? O que é que se perdeu e o que é que se ganhou? Como recuperar o seu sentido épico?
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*Notas:
1 - A continuar nas Sete Peles ; este texto foi escrito à pressa, e com base nos apontamentos por que orientei a minha intervenção sobre o 25 de Abril, ontem, dia 23, na Escola Secundária Carlos Amarante, em Braga; aqui ficam também os meus sentidos agradecimentos a essa escola, e ao honroso convite que me fizeram.
2 - Dedico este texto a todos os professores que estiveram na manifestação de 8 de Março, em Lisboa, incluindo também aqueles que não estiveram porque não puderam.

4 comentários:

Elisabete disse...

Como eu o entendo, TempoBreve. Também eu insisto em amar esta terra e esta gente; e também eu sofro por isso.
O seu belo texto é lúcido e magoado. Estou de acordo consigo: penso e sinto da mesma maneira. No entanto, gostando que não tivéssemos razão para sofrer, não gostaria nada de ser indiferente à gravidade da situação que vivemos.
Quereria dar-lhe esperança... posso só dar-lhe a mão. A si e a todos os que sonham com outro país e com outro mundo. Pelo menos mitigaremos um pouco a nossa solidão.
Tenha um bom 25 de Abril! Apesar de tudo.
Um abraço

Anónimo disse...

Do melhor que tenho lido ultimamente.Análise histórica lúcida e poética.Adorei esta metáfora "Rebentou-se o calendário parado num tempo que nos abafava".
E gostaria de não estar de acordo contigo, mas também acho que Abril é já só um mito.

Anónimo disse...

Arre! Esta utopia é mesmo velha e teimosa.Gosto de cravos,mas já estamos em Maio.Venham outras flores.

Carpe Diem disse...

Tenho de confessar que não me dirigi aqui para comentar o seu explendido texto porque só isto á a dizer dele.
Vim aqui para humildemente pedir que não deixe de escreve neste tao prestigioso blog.
Pois daqui advêm muita da minha inspiração,e sem ela tambem o meu blog perdera a pouca beleza que lhe é atribuida.
Não se perdeu a guerra, sómente a batalha.Pode não ser por agora mas eu tenho esperança que a guerra seja nossa, nem que para isso se tenha de esperar......e desesperar.
Um abraço