segunda-feira, 20 de abril de 2009

Epístola a Álvaro Salema*

É triste e é cómico, mas é preciso dizer-se:
quem mais recusa e nega é quem mais aceita,
e não aceita mais aquele que menos recusa.
Porque de infindo amor nos recusamos
a que ele seja esse infamar-se o ser
que as coisas e os humanos nunca são inteiras.
A conivência torpe com a humanidade,
no que ela tem de vil, de ignóbil, de mesquinho,
a conivência com este espectáculo hediondo
de um mundo de traição, perfídia, malignidade reles,
e sobretudo a estupidez triunfante, não é possível.
Seja qual fôr a causa, a nobre causa, a santa causa,
não é possível: nada que seja nobre,
nada que seja santo, pode resistir
a tão porcas vizinhanças. Mas,
se recusarmos essas complacências,
chamam-nos traidores aqueles que a traição cega
na fúria de que as causas justificam os fins.
Antes trair tudo isso. Se uma coisa, um homem, uma pátria,
precisam da mentira e do contágio sujo
para salvar-se - que há que salvar neles?
Que a nossa vida seja nossa: ninguém mais
a vive senão nós. Que a nossa voz
seja alheia: outros que falem por conta própria
ou por conta do que acham próprio. E,
se nos disserem que nos não entendem,
respondamos que a honra não se entende
onde o sentido dela se perdeu. E que,
quer queiram quer não queiram, ela existe
e há, desde o princípio do mundo, homens com o encargo
de velar por ela. Não serão felizes, não serão
amados, não serão sobretudo criaturas fáceis,
que obedeçam às ordens de quem não aceitaram que os mandasse.
Cada qual que mande nos fiéis da sua igreja;
e que eles sejam obedientemente fiéis.
Mas que se não diga que não pertence ao mundo
quem, porque lhe pertence, não aceita ordens
das sociedades de socorros mútuos
a que não pertence. Traição é isso de fingir-se alguém
o guardião só de uma verdade. As verdades
são prostitutas notórias que depravam
os seus guardiões. E, contra essas verdades tão ricas,
e tão poderosas de seus fiéis, só temos
esta dignidade que nos querem tirar -
talvez porque seja mesmo o de que sentem falta.

*Jorge de Sena, in Dedicácias
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Notas: 1 - parece difícil de ler, mas é tão fácil de entender (bastam algumas linhas); 2 - Já tinha posto aqui este texto a 6 de Dezembro passado, mas apeteceu-me voltar de novo a ele; 3- Era para o ter posto aqui sexta feira passada, mas resolvi adiar para hoje.

2 comentários:

Anónimo disse...

Repito o comentário que deixei, aquando da publicação deste teu texto em Janeiro, porque o considero actual.

Realmente, é imperdoável não ter lido este poema.Mas hoje li-o e reli-o,e cheguei ao fim e regressei ao princípio. Bastantes vezes. Algumas.As suficientes para interiorizar cada um dos versos e de me sentir uma pessoa em miniatura.Por ver que eles retratam o comportamento da humanidade e o servilismo dos que vivem das complacências. E os que vivem da resistência.Também.De poucos.

Um abraço,Mota. Não sei se terei a nobreza de ser tão «grande» como tu.Ou tão nobre!E não sei se me querias atingir.Tinhas direito a fazê-lo, mas não o mereço.E penso que não o fizeste.
Abraço da Ibel


4 de Janeiro de 2009 15:10

TempoBreve disse...

Ibel!
Não. Não tinha nem o direito, nem tu o merecias nunca. Como te pôde passar tal coisa pela cabeça? Aliás, foi pensando em ti, e em mais algumas outras pessoas daquela que em tempos foi também a minha escola, que não publiquei este texto na sexta-feira passada.
Responderei aos outros teus comentários. E irei aos "frutos".
Não faças comparações nem de nobrezas, nem de grandezas. Ou queres que eu me sinta mal?
Um grande abraço. E obrigado. Sempre.