quinta-feira, 19 de março de 2009

Vozes tão de filho e pai

- Ontem lembrei-me de ti, sabias?
- Evidentemente
- Pois como é que sabias?
- Sabia. Ponto.
- Não me venhas com enigmas!
- Não há enigma nenhum.
- Não há? Ai, se eu dissesse quem tu eras!
- Há quem saiba.
- Há?
- Claro.
- Quem?
- Os mais como tu.
- Os mais como eu?
- E como eu.
- Mau!
- Qual mau qual carapuça: é a pura verdade.
- E os outros mais?
- Esses não contam. Não entenderiam.
- C0m0 é que tu sabes isso?
- Sei.
- Não tenho tempo para discutir contig0.
- Eu sei.
- Mas ontem lembrei-me de ti.
- E hoje ainda mais.
- Pois. É o teu dia.
- O meu dia e o teu. Vai em paz para os teus, que eu estou sempre contigo.
- Estás o quê?
- Não sejas palerma. Sempre que pensas em mim é porque eu estou bem perto de ti a afagar-te manso.
- Eu sei.
- Eu sei que tu sabes.
- Sabes o que tenho andado a fazer?
- Sei. Até tens a mão direita dorida. E os dedos honradamente grossos.
- Pois é. E é por ti também.
- Eu sei. Tem cuidado. Não caias. Muda mais vezes a escada. Não te ponhas em acrobacias tontas para chegar ao último ramo. E não te distraias a observar os pássaros, sim?
- Está bem. Amanhã continuo. Anda lá por perto uma família de corvos, sabias?
- Sabia. E os corvos são aves sagradas, ou já te esqueceste?
- Não esqueci nem esqueço nada do que me ensinaste.
- Vai em paz. Até amanhã.
- Até amanhã.

15 comentários:

Anónimo disse...

Hoje também falei com o meu,sabias?Está junto do teu.Às tantas,já se cruzaram ou quem sabe,a vinha lhes dera tenra e (e)terna amizade?
Dói pensar.Dói não ter.Mas consola saber que houve alguém que nos fez ser!

TempoBreve disse...

Olá, "Tempo que passa"! Como vai passando? Passando, simplesmente, como diz o outro, o Caeiro, sem nada dizer? Não. Acho que não. Eu acho que você é vento que, passando, diz. Mas isso é outra história que para aqui não quero agora.
Com que então, também falou com o seu, foi? Fez muito bem. Mas que a moda não se lhe pegue tão cedo, que, em se lhe pegando, nunca mais o larga.
Eu falava "dele", do meu. Pelos vistos, você adivinhou que eu falava dele. E até sabe que o seu está junto do meu. Não sei se estarão, que o meu está num lugar bem discreto. Mas, quem sabe? Até porque se o seu gostava de videiras, isso seria facto bastante para que pudessem parar, conversando, em se cruzando um com o outro. E, se mais não fosse, isso seria o bastante para iniciarem uma amizade. Não seria difícil, que o meu era um tagarela que se perdia falando.
Deixe lá isso da dor, que eles não iam gostar de saber.
Obrigado pela sua visita.

Ibel disse...

Li.Primeiro pensei que era uma conversa que tinhas tido com o teu filho.Depois voltei ao princípio e fui de ramo em ramo até chegar aos conselhos prudentes sobre as acrobacias poéticas, as mais ousadas, mas também as mais perigosas.Depois reli.E o mosaico amoroso cheirava-me a diálogo entre artista e filho de artista.E o desenho era semelhante ao de «uma rosa e um piscar de olhos...»
Mas este diálogo é intemporal e tu deixaste-o aqui também por isso.Uma mensagem de «lá» para os que cá estão e hão-de passar depois dele e de ti, mas com as sementes a furar a terra para espreitar os pássaros seduzidos por mãos doridas.
Os teus netos vão gostar de ler e depois deles os netos deles e, quem sabe, também os meus venham cá espreitar e as suas lágrimas ganhem a força das asas.
Homem dos diabos!!!!

Anónimo disse...

Passei aqui de mansinho,como que te pedindo um pouco de abrigo.É que hoje,a força que trago nas asas,é proporcional à que trago na alma.
Peguei nas palavras que deixaste na mesa e que falam da amizade.Coloquei umas estacas à volta delas para que não venham outros ventos derrubá-las.E quando dizes que o «teu» era um tagarela,o «meu»,tagarela era também.E gostava de podar,de mexer na terra,de contar histórias...carradas delas.E deixou-mas.São o meu refúgio,a minha espinha,o meu tesouro.
O sol chama por mim,mas as nuvens,hoje,estão mais apelativas.
Fica bem,tempo.

TempoBreve disse...

"Ibel" e "Vento que passa",

Hei-de responder ao que aqui escreveram. Penso que brevemente. Agora, só tenho tempo para agradecer.
Um abraço.

TempoBreve disse...

Ibel!

Passaste por aqui, como alguns outros poucos, e, tal como eles, deste de chapa com uma caixa que tinha na tampa o prosaico título "Tão de filho e pai". Até aqui, tudo muito bem.
A maior parte de quem por cá passou, vislumbrou a forma da caixa, leu, certamente, o título na tampa e, até porque era "Dia do pai", pode mesmo tê-la levantado um pouco, só para espreitar, a ver se tinha ou não tinha; dos poucos que viram que tinha, talvez alguns, por desfastio, tenham remexido a primeira camada, a da superfície, a ver o que era; talvez alguns outros, ainda mais poucos, tenham descido algumas camadas mais fundo; poucos terão chegado ao fundo, a ver do préstimo que nela haveria ou não. Depois, todos seguiram viagem, sem deixar rasto. E, até aqui, tudo muito bem.
Antes de ti, e depois de ti, só o "Tempo que passa" passou e parou, e deixou seu rasto dizendo que viu seu pai no meu, ou o meu no seu, e irmanou-os mesmo em amizades de ramos de videiras que se entrelaçam. E, até aqui, tudo muito bem.
Depois vieste tu. Escancaraste a tampa. Camada a camada, foste até ao fundo. Pesaste e mediste tudo o que encontraste. E até aqui, tudo muito bem.
Mas tu não te contentaste com o que estava visível. Tu és daquelas já poucas pessoas que sabem que todas as caixas têm seus escaninhos mais de resguardo para coisas melhores. E leste uma vez. E leste duas. E leste três. E assim encontraste todos os três escaninhos secretos: o do filho, o do pai, o dos netos. E, não contente, com a tua imaginação fervente de artista, revestiste esses escaninhos meus da fantasia tua. E fizeste bem. Fizeste-o tão bem que, ao voltar a ler o que eu tinha escrito, vi que, por milagre, estava lá também a poesia tua que tu lá puseste.
Deixaste o teu rasto. Sempre tão poético.

TempoBreve disse...

"Temo que passa!"

Venha de mansinho ou não, eu reparo sempre. Mas venha; venha sempre, de mansinho ou não. Quanto ao abrigo, a minha manta é curta, mas há sempre uma ponta que está disponível.
A força das asas, por muita que seja, é sempre fraquinha ante a grandeza da alma, mesmo que esta mal se veja.
Gostei de saber do cuidado que teve a fazer a cerca de estacas. Olhe que se elas forem de varas verdes, e se as regar bem, elas, as estacas, ainda viram árvores, ganhando raízes. O que, no tempo que passa, é uma boa acção contra os desertos que nos vão cercando.
Pelos vistos o seu pai gostava de coisas bonitas; de coisas de gente que sabe que é gente. Alegro-me com isso. É que o meu e eu também gostamos muito.
é engraçado como muitas das vezes o que de melhor nos fica dos pais são os gostos deles, são os gestos deles, são as histórias deles. E eu acho que já descobri por que é que é assim. Talvez eles, mesmo sem o saberem, ao contarem-nos histórias, contavam-se a si mesmos. Por isso é que gostamos ainda mais delas agora. Por isso, não me admira que as histórias do seu sejam um tesouro seu.
Mas que confiança é essa de me tratar por tu? Ai, qu'ela!
Um abraço.

Anónimo disse...

E paradigmatico o encanto deste trecho que,fazendo jus ao seu criador, nos tranfere a um outro tempo,bem mais calmo.Aquele tempo passado que gostamos de recordar,sem termos de nos psicanalizarmos numa introspeccao onirica.Sem termos de recorrer ao veludo placentario e desinibido de um qualquer diva freudiano.Faz bem lermos palavras que nos fazem sentir bem.E isso e bom.

TempoBreve disse...

Caro anónimo!
Você ia-me assustando com essa coisa do divã. Será mau sintoma, este quase susto? Ai, valha-me ele!
As suas palavras simpáticas palavras são "palavras que nos fazem sentir bem. E isso é bom".
Um abraço.

Anónimo disse...

Existe um lugar,intemporal,um Eden, onde tudo aquilo que algum dia amamos,tudo o que aos nossos sentidos foi belo e que perdemos neste mundo, ou que ja nao existe,se encontra ai´a nossa espera.As coisas sao belas porque so passam por nos uma unica vez na vida e nao voltam mais.E de cada vez que delas nos recordamos lhes vamos acrescentando pormenores cada vez mais ricos em beleza.Sao as recordacoes.Que seria da nossa vida cheia de fealdade,desencantos e desilusoes se nao tivessemos a lembranca de quao felizes fomos algum dia?Daquele momento unico,magico em que nos foi dado contemplar um por- do- sol,que passeamos na quietude de um bosque,que sentimos a alegria de sermos amados,quando tivemos a nossa primeira namorada,como lhe roubamos o primeiro beijo.Ahh! Recordacoes,sao momentos perdidos no tempo.Se a eternidade esta ao alcance do homem apenas por um passo de fe,jogar-me-ia do abismo mais alto tendo a certeza de que nesse momento de dentro de mim se desenrolariam asas que me levariam a esse lugar,nem que fosse para ter um vislumbre fugaz do Paraiso.

TempoBreve disse...

Caro anónimo ( O último da lista)!

Não acrescento nada ao seu amável comentário, não vá eu estragar a suavidade e a leveza que nele se encontra. Concordo inteiramente com a sua perspectiva, desde que ela não perturbe a ousadia de buscar no presente momentos outros que venham a integrar depois o tal "intemporal Eden" a que se refere, mesmo que ele não exista. Sim, são esses momentos que a memória detém e o tempo burila que dão graça à vida, mesmo quando o mundo parece um disparate.
Você já tem um vislumbre desse paraíso nas recordações de que fala. E faça-me um favor: não se abeire de abismos que prometam asas.
Obrigado pela sua visita e pelo seu texto bonito.

Anónimo disse...

Tem uma Boa Pascoa,camarada,e lembra-te que nos todos gostamos de ti.

TempoBreve disse...

Caro anónimo!

Essa do "camarada" é de facto subtil. Mas até nem me soa mal. E eu, lá por gostar de cavalos, não quer dizer que não gosto muito de vós também.
Boa Páscoa.

luCordeiro disse...

Meu pai já se foi.Meu avô também.E as boas histórias e recordações que tenho não são do primeiro,mas do outro.Meu avô foi meu pai e foi com ele que aprendi que meninas podem ser corajosas,livres,tão moleques quanto os meninos e muito bravas também.E essas coisas me dão força,até hoje,para lutar por tudo o que quero,sem me importar com a sociedade machista e preconceituosa em que vivemos.Se sou uma mulher inteira,destemida e realizada devo ao meu avô.Ele me ensinou,na prática,a jamais me encolher diante do mundo,a "trocar a escada de lugar" se necesário for,ainda que eu nem sempre consiga.
Abraços e parabéns pelo texto.

TempoBreve disse...

LuCordeiro!

Agradeço a sua visita e as palavras que me deixou. Congratulo-me com o facto de ter tão boas recordações do seu avô, quais eu as tenho do meu pai. Isso é bom. Significa que deixaram em nós uma marca indelével que nos dá alento e ser. É que ser não é passar indiferente e derrotado por este mundo imperfeito. É lutar, como você diz. E olhe: quando não se cvonsegue trocar a escada para um lado, é porque esse não é o lado certo; mas há sempre um outro lado à espera dela.
Um abraço para si.
António Mota